domingo, 13 de fevereiro de 2011

Amores interronpidos e retomados





Eles namoraram, na adolescência, e depois terminaram tudo. Casaram com outras pessoas, fizeram as suas vidas, tiveram filhos. Mas, por força do destino, por coincidência ou simplesmente porque sim (nós preferimos a versão do destino), um dia voltaram a encontrar-se. Na véspera do Dia de São Valentim, a nm foi conhecer três histórias de amores interrompidos e mais tarde retomados.

Lia e Guy

«Yes, it was love at first sight» («Sim, foi amor à primeira vista»), declara Guy com um sorriso embevecido, ao mesmo tempo que procura a mão dela. Lia confirma, repetindo o sorriso dele e estendendo a mão. Um amor à primeira vista que nasceu há trinta anos, quando o olhar de um congelou no olhar do outro e, por instantes, o mundo parou de girar.

Ela estudava num colégio interno inglês, para meninas, ele estudava na Academia Real Militar Sandhurst. Ela tinha 16 anos, ele 19. Ela tinha sangue na guelra, ele gostou logo disso. Mas recuemos um pouco para compreender o que fazia uma portuguesa num colégio interno inglês, e o que é isso de ter sangue na guelra (ou pêlo na venta, como se queira).

Lia tinha estudado no Ramalhão, um conceituado colégio interno para raparigas, em Sintra, e a passagem para o liceu estatal não foi exactamente aquilo que a mãe dela previra. Na verdade, foi como encostar um fósforo aceso a um pavio curto. Lia tinha então 14 anos e a liberdade do liceu foi avassaladora. Chumbou por faltas. A mãe, que não tolerava desatinos, mandou-a para Inglaterra. Mas pecou por excesso. O colégio era muito rigoroso, demasiado rigoroso. «Era um colégio de freiras, as meninas andavam de gravata, chapéu e luvas e eu odiei aquilo. Não me apetecia nada ir à missa todos os dias, não me apetecia nada não fumar, não me apetecia nada ter dez desportos diferentes com dez uniformes diferentes. E, um dia, eu e umas amigas fomos passar o fim-de-semana e não voltámos. Decidimos ficar mais uns dias fora. Claro que fomos todas convidadas a sair do colégio.»

A mãe da rebelde enfureceu-se e achou que ela tinha feito de propósito para ser expulsa e assim poder voltar a Portugal. Vai daí e, em vez de a trazer para casa, meteu-a noutro colégio interno, mas mais moderado. «Já não era de freiras, não havia uniforme. Podia-se fumar... E depois havia as festas.»

As festas. Rapazes convidados para as festas no colégio, meninas autorizadas a irem às festas dos rapazes. E foi num desses intercâmbios de festas inter-colegiais que os olhares de Lia e Guy se cruzaram e o mundo parou, ou pelo menos eles apostam que sim.

Namoraram dois anos e meio, mais coisa menos coisa. Assunto sério, com apresentações feitas a ambas as famílias, ela a conhecer os Lower, ele a voar até à casa dela do Algarve, para passar uns dias. Mas Lia continuava indomável. E aos 18 anos quis voltar para Portugal, mandando a relação às urtigas. «Ele queria casar e ter filhos. Eu queria mundo! Tinha 18 anos e queria ir para a faculdade, queria viajar, queria conhecer pessoas. Não estava minimamente preparada para uma coisa tão séria.»

Guy, que percebe alguma coisa de português, vai acompanhando a conversa. Neste ponto da história, fica sério e quase revela um beicinho triste. «She broke my heart» («Ela partiu o meu coração»), confessa. «She really broke my heart» («Partiu-o mesmo»).

Ele ainda lhe escreveu algumas cartas, apaixonadas, lânguidas, implorando que ela reconsiderasse, recordando os bons tempos que tinham passado juntos. Ela respondeu a poucas. E assim, em 1983, terminou o namoro de Lia e Guy. Ponto final parágrafo. Ou será preferível dizer reticências?

A vida de cada um seguiu rumos distintos, em países diferentes. Ele casou, teve dois filhos. Ela casou, não teve filhos. Divorciaram-se ambos.

Em 2004, ele foi passar férias ao Algarve e os pés encaminharam-se, como que impelidos por uma força magnética, para a casa onde tinha conhecido a família dela. Tocou à campainha, ninguém atendeu. Persistente, resolveu deixar um bilhete debaixo da porta. Dizia qualquer coisa como: «Sou o Guy, de Inglaterra. Passei aqui. Deixo-te o meu e-mail.»

Quis o destino que a mulher-a-dias da família de Lia não fosse muito competente, quis o destino que a mãe de Lia encontrasse, meses depois, o bilhete, com mais cara de lixo do que de bilhete, cheio de pó e amarrotado, quis o destino que Lia lhe desse alguma atenção e enviasse um e-mail a dizer olá. Trocaram algumas palavras, contaram um ao outro dos respectivos casamentos e divórcios, e foi tudo. Ele guardou o numero de telemóvel que aparecia, por defeito, no e-mail da empresa onde ela trabalhava. Ela nunca mais pensou no assunto.

Cinco anos passaram, desde essa troca de correspondência. E em Setembro de 2009, Guy voltou ao Algarve, para jogar golfe com um grupo de amigos. E só pensava... nela. Estava no hotel, ligou para o número que tinha guardado, mas estava a pôr indicativos a mais e não acontecia nada. Desceu, perguntou ao recepcionista se estaria a fazer tudo bem, tornou a tentar. Pelo meio, os amigos iam insistindo para que se despachasse, que queriam sair para irem tomar um copo. Ele pedia-lhes só mais um minuto.

Do outro lado, Lia preparava-se para ir ao ginásio. Mas não tinha vontade. Arrastava-se. Calçou os ténis, jogou-se para a cama, como se algo a obrigasse a ficar ali, junto ao telemóvel que, a certa altura, tocou. «Vi que o número era do Algarve e pensei: não conheço ninguém no Algarve, não vou atender.» E não atendeu. Mas depois, Guy ligou do seu próprio telemóvel. E aí, como Lia faz gestão de património e recebe inúmeras chamadas de clientes aflitos, teve mesmo de atender. «Hello! It"s Guy!» («Olá! É o Guy!») Ela ficou imóvel. O coração deu um pulo. Sem perceber bem como disse-lhe: «Guy? Olá! Tenho de te ver!»

No dia seguinte, Lia apanhou o avião para Faro. Ele, por sua vez, esperava-a com uma ansiedade imensa. Os amigos, no hotel, gozavam: «Uma latina? Mas tu não sabes como são as latinas? Aos 40 anos estão cheias de filhos, são gordas, muito gordas, com um rabo gigante! No que te vais meter, querido Guy! Vais apanhar a desilusão da tua vida!» Ele tremia com a ideia da decepção. Afinal, tinha passado os últimos trinta anos a pensar nela. Sim. Leu bem. É verdade que casou, é verdade que teve dois filhos. Mas nunca mais esqueceu Lia. «A palavra-chave do meu computador foi sempre, ao longo dos anos, LiaandGuy (Lia e Guy). A cruz que ela me deu, com o seu nome, nunca saiu do meu pescoço. Mesmo durante os anos que estive casado. Nunca mais a esqueci. Nunca amei ninguém como a amei a ela.» Lia sorri. Também ela ficou incrédula com a revelação. Também ela não acreditou quando ele lhe contou da cruz. Mas depois, ao ver fotografias dele, percebeu que era verdade. A cruz estava em todos os retratos, em todas as situações, ao longo dos anos.

No dia marcado para o encontro, Guy esperava-a na recepção, enquanto os amigos aguardavam escondidos e a gozar o prato. Nisto, aparece uma morena enorme, com um traseiro de impor respeito. Os amigos largaram a rir: «Nós avisámos!» Ele susteve a respiração. Quando ela se voltou, suspirou de alívio. Não era a sua Lia.

Nisto, surgiu ela. O coração dele descompassou. O dela também. Deram um abraço e o mundo voltou a deixar de se mover. Como há trinta anos. A conversa fluiu com uma naturalidade invulgar. Como se não tivesse havido qualquer interrupção. Como se não tivessem existido outras pessoas nas suas vidas. Como se o mundo tivesse ficado assim, congelado, trinta anos congelado, à espera, e só agora se preparasse para girar outra vez. «O que eu senti foi que foi tudo tão fácil. Com ele não tenho de fingir. Nem no início da relação, em que tem de se impressionar e dizer e fazer as coisas certas... connosco parece que não era preciso. Porque o início da relação já tinha sido, há trinta anos. E, por isso, podíamos bem saltar essa parte e limitarmo-nos a ser quem somos, sem máscaras.»

Lia e Guy casaram no dia 19 de Junho de 2010, dia do aniversário dela. Ela completou 47 anos, ele estava com 50. No dia da boda, Lia levou ao pescoço uma medalha que ele lhe tinha dado, há trinta anos, no dia de São Valentim e que tinha inscrita a frase «A day to remember» («Um dia para recordar»). Quando botou os olhos na medalha, Guy chorou como uma criança.

O casal vive em Portugal e é feliz. Só houve, até agora, um pequeno problema nas suas vidas de reapaixonados: a cama. Durante alguns meses, Guy dormiu com os pés de fora, porque a cama dela era para inglês ver (e não dormir). Tirando isso, é só felicidade e o mundo, de novo, a parar de girar.

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